Soltem-me, pedia Yoani

... Vão ter de escutar Porque se algo tenho é a palavra para falar Yoani Sanchez Uma jovem mulher de Cuba que sofreu violência institucional. Quantas de nós aqui também no Brasil sofreram de violência policial! ...
...
"As duas violências foram muito graves, a doméstica e a institucional. Em ambas, me senti impotente. Mas não ver a quem recorrer é algo que deixa a pessoa muito frustrada, deprimida"

Maria da Penha

segunda-feira, julho 13, 2009

Uma verdadeira "conspiração" contra a Lei Maria da Penha por Lindinalva Rodrigues Corrêa


Os homens também necessitam da proteção especial prevista na Lei Maria da Penha?
Diagnóstico crítico sobre a violência de gênero sofrida por mulheres e a constitucionalidade das medidas de caráter afirmativo que visam combatê-la.

Sumário: 1- Análise da decisão judicial que possibilitou a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de um homem, congregada à apreciação crítica do entendimento doutrinário e jurisprudencial de teor claramente machista e preconceituoso, expondo que verdadeiramente ainda não se reconhece as mulheres como sujeitas de direitos. 2 - A oposição injustificada dos operadores jurídicos quanto à interpretação lógica e conseqüente aceitação da imperativa necessidade de aplicação dos dispositivos insertos na Lei Maria da Penha. 3 - A aversão demonstrada pelos agressores de condições econômicas privilegiadas aos ditames da Lei 11.340/2006 e comentários sobre a constatação de que a prerrogativa de "independência funcional" garantida aos julgadores é sopesada de forma diversa e subjetiva, que tendo em conta as peculiaridades dos envolvidos, é assegurada ou rechaçada. 4 - A questão da violência de gênero e os fundamentos de validade legais e constitucionais da Lei Maria da Penha. 5- As razões, de ordem cultural, implícitas nas decisões dos operadores jurídicos que resistem em garantir às mulheres vítimas de violência doméstica os direitos que lhe foram assegurados por lei e os fundamentos jurídicos que autorizam somente às mulheres uma política especial de proteção de caráter afirmativo.

Lindinalva Rodrigues Corrêa*

"A mulher é a escrava dos escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes que ela quer ser homem." [1]

1- Análise da decisão judicial que possibilitou a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de um homem, congregada à apreciação crítica do entendimento doutrinário e jurisprudencial de teor claramente machista e preconceituoso, expondo que verdadeiramente ainda não se reconhece as mulheres como sujeitas de direitos.

A recente e polêmica decisão de um magistrado do Juizado Especial Criminal de Cuiabá-MT, que aplicou, segundo o próprio "por analogia", as medidas de proteção da Lei Maria da Penha em favor de um homem que estaria sofrendo violência doméstica praticada por uma mulher, obriga-nos a algumas oportunas reflexões. Passemos então a elas:

Lenio Luiz Streck[2], bem antes da entrada em vigor da Lei Maria da Penha (11.340/2006) já criticava a forma discriminatória com que o Poder Judiciário sempre lidou com a questão dos crimes de violência contra a mulher e convida-nos a examinar obras doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema, para que possamos compreender a situação hermenêutica em que se insere a mulher no imaginário dos juristas, que interpretam a lei da forma que lhes convém para sustentar posicionamentos absurdos e atentatórios contra preceitos constitucionais, a dignidade da pessoa humana e, sobretudo aos direitos humanos das mulheres, o que não pode ser analisado fora do contexto da realidade de como a mulher ainda é vista pela sociedade e quais os direitos que lhe são assegurados, de fato, e não meramente pelas normas legais vigentes, freqüentemente ignoradas ou distorcidas por seus intérpretes, que as analisam de acordo com sua conveniência e visão ideológica e subjetiva do mundo, tendo em conta a identidade das partes envolvidas e suas condições peculiares.

Sobre a dogmática jurídica que despreza a vontade e os direitos da mulher, Streck faz importantes apontamentos: "em comentário ao art. 213 do Código Penal, que trata do estupro, encontrei o seguinte comentário de um dos doutrinadores mais festejados do direito penal em terrae brasilis (Jesus, 2002, p. 722-723): Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações como e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa (grifei). Assim, a contrario sensu, pode-se entender que, na opinião do referido autor, se não existir a justa causa ou se a negativa da esposa em mantiver relação sexual for de caráter mesquinho, o marido pode forçá-la a tal, o que significa estuprá-la (tecnicamente falando)...! Ou isto, ou entendi mal o citado comentário...! Sem dúvida, este é um dos exemplos de como a dogmática jurídica (mal) trata a mulher. Não há, pois, nesse âmbito, nesse imaginário, qualquer possibilidade de a mulher ser tratada como gênero, como igual! [3]

Observemos tais entendimentos doutrinários em franca aplicação por juízes e desembargadores, em exercício pleno de suas "incontestáveis" "independências funcionais", que abrigam toda sorte de pré-conceitos e insensibilidade imagináveis, senão vejamos: "A vítima é analfabeta e se mostrou simplória nos contatos com este juízo... Não encontro nos autos provas suficiente para condenar o acusado Celso Alberto, embora reconheça não seja elemento sociável nem de boa vida pregressa. Entretanto, pelos outros delitos a ele imputados, está respondendo processo. Finalizando, custa a crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem. Ante o exposto e com fundamento no art. 386, VI do Código de Processo Penal, absolvo o acusado Celso Alberto da imputação a ele feita na denúncia (Andrade, 1997, p.24)" [4]

Reveja o famoso caso em que o estupro foi reconhecido como 'cortesia' pela Justiça brasileira: "Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a sua vida estragada por causa de um fato sem conseqüências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia... (TJRJ, 10.12.74, RT 481/403)." [5]

E alguns outros:

"Imagine, Excelência, um homem de 54 anos de idade, época do fato, como é o caso do acusado... Manter relações sexuais diariamente com uma mocinha. Claro que a vítima está mentindo, pois tal homem, nesta idade, não agüentaria tal ritmo, por dois anos consecutivos, fazendo sexo diariamente...." [6]

"uma jovem estuprada há de se opor razoavelmente à violência, não se podendo confundir como inteiramente tolhida nessa repulsa quem nada fez além de gritar e nada mais. A passividade que muitas vezes se confunde com a tímida reação, desfigura o crime, por revelar autêntica aquiescência" (in RT 429/400).[7]

E o Estado de Mato Grosso também se faz presente: "Na noite do dia 10 de fevereiro de 1985, em Cuiabá, B.L.D., pardo, solteiro, pedreiro, 22 anos, teria espancado e estuprado uma conhecida sua do bairro, B.L.C., preta, viúva, 60 anos. No auto de prisão em flagrante consta que, na noite do crime, a vítima encontrava-se em uma festa na casa de uma das testemunhas ouvindo música e dançando com outras moças e, o indiciado, no bar pregado a casa, de propriedade dessa mesma testemunha.

Na polícia, segundo testemunhas e o próprio indiciado, este teria tentado agredir a vítima na festa e, não logrando êxito, após o término desta, quando a vítima dirigia-se à sua casa, o indiciado a perseguiu e, agredindo-a a socos e pontas-pé, arrastou-a para um matagal, onde teria mantido com ela relações sexuais à força. Depois, teria retornado ao referido bar, com a roupa toda manchada de sangue, para pegar a bicicleta que tinha deixado ali. As testemunhas afirmavam que o indiciado era mau elemento e vivia embriagado, perseguindo mulheres e promovendo várias desordens no bairro.

Denunciado por estupro e lesões corporais, o acusado, na fase judicial, entretanto, negou as declarações prestadas na polícia, alegando que foram obtidas mediante espancamento. Todas as testemunhas, em juízo, também contraditaram os depoimentos prestados na polícia. A situação se inverteu e a vítima passou a ser qualificada como alcoólatra, prostituta e aliciadora de menores, e o réu, por sua vez, como homem trabalhador e de bom comportamento.

O juiz entendeu que eram nulas as declarações prestadas pelo réu na polícia, tão somente em função de laudo que atestava lesões em seu rosto, sem qualquer averiguação acerca da autoria dessas lesões. Quanto às lesões na vítima, embora materialmente comprovadas, o juiz entendeu que não estava comprovada a autoria, assim como não se podia comprovar a materialidade do estupro. Convencido pela "palavra mais sóbria do acusado", em detrimento da palavra da vítima, aliás, de péssimos antecedentes e alcoólatra inveterada, o juiz decretou a absolvição do acusado, por falta de provas. "[8]

Agora, voltemos nossa atenção por um instante para um caso bem mais recente, que chama mais atenção pela análise insensível, machista e preconceituosa revelada por uma juíza (mulher), designada para responder por algum tempo por uma das Varas Especializadas de Violência Doméstica Contra a Mulher[9]:
Tratava-se de ação penal proposta pelo Ministério Público em desfavor de um agressor que de forma livre e consciente causou incêndio na casa habitada de sua então companheira, com pleno conhecimento de que exporia a perigo comum a vida, integridade física e o patrimônio exclusivo da vítima, por vingança, em razão de a vítima lhe ter negado mais dinheiro após ser agredida em data festiva, na frente de seus familiares.

Conforme CERTIDÃO constante do processo, a própria vítima compareceu na Escrivaninha do juízo após a liberação do réu que ficou apenas 07 dias preso, declarando o seguinte: "QUE APÓS TER SIDO COLOCADO EM LIBERDADE O INDICIADO S. S. O. VEM LIGANDO PARA A VÍTIMA CONSTANTEMENTE, AMEAÇANDO-A, DIZENDO PARA QUE A MESMA VOLTE A VIVER COM O INDICIADO, CASO CONTRÁRIO, IRÁ ACABAR COM A VIDA DELA E DE SEU FILHO E DELE PRÓPRIO; QUE QUANDO O INDICIADO S. SAIU DO PRESÍDIO DO CARUMBÉ O FILHO DA VÍTIMA DE NOME R., DE 10 ANOS, PASSOU MAL, POIS TEM MEDO DO INDICIADO S. (...) QUE R. ENCONTRA-SE ASSUSTADO POR SABER QUE O INDICIADO S. ENCONTRA-SE SOLTO; QUE R. CERTA VEZ PEDIU PARA QUE SUA MÃE VOLTASSE A VIVER COM O INDICIADO S. PARA QUE NÃO OCORRESSE RISCO DE PERDER SUA MÃE; QUE NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE SE SEPARA DO INDICIADO S. ; QUE TODA VEZ QUE OCORRE UMA SEPARAÇÃO O INDICIADO FICA MUITO VIOLENTO, CHEGANDO A AGREDIR A VÍTIMA J. QUE CERTA VEZ A VÍTIMA FOI AGREDIDA TANTO, QUE QUASE FICOU EM UMA CADEIRA DE RODAS; QUE O INDICIADO RESPONDEU INQUÉRITO POLICIAL POR TENTATIVA DE HOMICÍDIO CONTRA A PRÓPRIA VÍTIMA, NÃO TENDO SIDO ATÉ A PRESENTE DATA ENCAMINHADO AO JUÍZO COMPETENTE; QUE A VÍTIMA ALEGA QUE JÁ FEZ UNS 03 EXAMES DE CORPO DE DELITO, TODOS PELA DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER; QUE ACREDITA QUE O INDICIADO NÃO PERMANECE PRESO, EM VIRTUDE DE TER TIO DA POLÍCIA DE NOME S. O.".

Dos autos se constatou que a vítima e seu "pedido de socorro" representado pela certidão acima, foram simplesmente ignorados pelas autoridades que até então haviam oficiado no processo que por tratar-se de violência doméstica e familiar contra a mulher, foi redistribuído para uma Vara Especializada após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, onde por ocasião da audiência designada para a oitiva de testemunhas de acusação, a vítima foi ouvida e prestou o seguinte depoimento:

"Que a informante conviveu com o acusado por aproximadamente 03 (três) anos; que o acusado era um homem ciumento e agressivo; que durante o período de convivência o casal discutia e ocorriam agressões físicas por motivo de ciúmes; que o acusado tinha ciúmes até dos filhos da informante; que na data dos fatos, a informante foi almoçar na casa da filha, quando o acusado chegou e pediu para ela ir embora para casa; que a informante disse que iria depois; que o genro da informante afirmou ao acusado que na casa dele o acusado não entraria para agredir a Dona J., que mesmo assim o acusado invadiu a casa da informante, quando o casal passou a discutir e o acusado desferiu um tapa no rosto da informante; que os familiares da informante que estavam no local tentaram separar o casal; que na confusão o acusado começou a agredir a todos, e houve muita gritaria, quando o acusado quebrou tudo; que na confusão o acusado também foi atingido, mas a informante não sabe dizer com quem; que naquele momento a informante ficou com medo do acusado e todo mundo tinha medo dele....quando chegou próximo da sua casa e percebeu que havia fumaça na casa; que o acusado havia jogado álcool no guarda roupas, ligando o botijão de gás e ateado fogo ; que vários móveis e parte do imóvel foram destruídos, que a informante passou mal, e foi levada para o hospital... que o acusado anteriormente a data dos fatos, destruiu objetos da informante; que uma vez o acusado dizia que iria suicidar e saiu com a informante no carro, quando bateu o carro e destruiu o carro da informante...o acusado nunca pagou pelos prejuízos causados a informante em razão do incêndio; que após os fatos e o acusado ter se liberado da prisão, ele telefonava muitas vezes para a informante, e ameaçava invadir a casa dela e matar todo mundo, e após suicidar, caso a informante não fosse falar com ele; que a informante algumas vezes marcava em lugares públicos para falar com o acusado, porque temia as atitudes dele; que o acusado deixou de importunar a informante há mais ou menos um ano; que a casa e os móveis foram adquiridos somente pela informante; que quando a informante passou a conviver com o acusado já possuía tais bens... QUE A INFORMANTE DURANTE SEU DEPOIMENTO APRESENTOU ESTADO DEPRESSIVO, CHOROU O TEMPO TODO, DEMONSTRANDO TER TEMOR POR TUDO O QUE OCORREU ENTRE O CASAL; que durante o período em que o acusado conviveu com a informante, ele não trabalhava... Dada a palavra ao Ministério Público, às perguntas respondeu: que o acusado durante o período de convivência agrediu fisicamente a informante várias vezes, que a deixava presa em casa, a enforcava; que certa vez, em uma briga, a informante estava vindo da beira do rio com o acusado e o filho de três anos, quando o acusado desferiu um tapa na criança, que ficou gritando; que a informante abraçou o acusado para defender o filho, quando ele a jogou contra uma mesa, e ela bateu a coluna; que naquela data perdeu os movimentos da cintura para baixo, e ficou no hospital por quinze dias, e usou cadeira de rodas por algum tempo; que não sabe dizer quanto tempo, mas por aproximadamente um mês; que depois ficou se rastejando pelo chão, até conseguir voltar a andar; que o acusado chegou de afirmar que caso a informante largasse dele, ele teria de pagar uma pensão para ele; que o acusado assinava os cheques da vítima e usava no comércio; que quando o acusado saiu da cadeia, a informante chegou a desmaiar, e o filho dela R., também desmaiou; QUE A INFORMANTE AINDA HOJE SENTE MUITO MEDO DO ACUSADO; que a informante tem formas de provar as agressões anteriormente sofridas por meio dos boletins de ocorrência que registrou junto à Delegacia da Avenida do CPA e também várias vezes na Metropolitana; que quando a informante abraçou o acusado na tentativa de se proteger, e proteger o filho, o abraçou pela frente e foi empurrada para trás; que a informante na época em que machucou a coluna ficou internada no Pronto Socorro, e depois foi levada para o hospital Santa Rosa; que quando a informante voltou para casa, o acusado não estava no lar; que "quando ele fazia, ele sumia"... que quando a informante estava com o acusado, ela não tinha medo, mas quando estava longe, separado dela. Ela temia que ele pudesse matá-la"

O então ex-genro da vítima M. R. F., prestou na ocasião valorosos esclarecimentos para a justiça:

"foi casado com a filha da vítima, chamada L.; que no dia dos fatos, já houve uma "reversão do casal", o acusado e a vítima; que o acusado não queria deixar a vítima o informante usar o carro da vítima...que na data dos fatos o acusado foi até a casa do informante e invadiu a casa para agredir a vítima, que na época era sua sogra... a vítima disse que o acusado pediu dinheiro a ela; que o informante acha que naquele momento o acusado não tinha bebido; que o informante não permitia que o acusado entrasse na casa dele; que na segunda vez que o acusado retornou e começou a confusão; que o acusado começou a agredir a vítima, quando a filha dela interferiu e o interrogado também interferiu para não deixar que o acusado batesse na vítima e nem na sua esposa ... que no meio da confusão, o acusado foi atingido por uma garrafada, que acertou próximo ao ombro dele... que o acusado saiu da casa do informante ameaçando colocar fogo na casa da vítima; que o acusado saiu da casa do informante e foi para a casa da vítima onde tirou a mangueira do botijão de gás, e colocou fogo dentro do guarda roupas, onde haviam muitos papéis, ocasionando o incêndio na casa;que quando a vítima chegou na casa, a casa estava incendiada...que o acusado afirmou na delegacia que ele ateou fogo na casa da vítima ... que o acusado e a vítima brigavam muito, e o acusado agredia a vítima fisicamente; que o acusado já destruiu dois carros da vítima...que o acusado costumava ingerir bebidas alcoólicas; que um dia depois que o informante fechou a lanchonete, a vítima telefonou dizendo que este tinham saído de um espetinho, quando ela decidiu ir embora e o acusado grudou no cabelo dela, quando perdeu o controle do carro e acabou batendo o carro em outro carro; que o veículo acabou... QUE A VÍTIMA DIZIA SENTIR MUITO MEDO DO ACUSADO, E AFIRMA QUE ELE A AMEAÇA ATÉ HOJE;que a vítima disse que até HOJE, o acusado a ameaça por telefone; que o informante várias vezes socorreu a vítima das agressões; que certa vez a vítima quase ficou deficiente , porque o acusado a jogou em uma mesa, e o informante teve que chamar o resgate porque a vítima não conseguia se mover do chão ; que a vítima foi levada na maca; que a vítima foi para o Pronto Socorroe depois para o Hospital Santa Rosa; que após isso a vítima foi morar na casa do informante; onde ficou quase um mês sem poder andar; que quando ela foi para a casa dela ficou usando cadeira de rodas para se locomover; que após isso o acusado invadiu a casa da vítima e por isso ela foi para a casa do informante, porque estava com medo do acusado... que quando o acusado bebia ele se tornava um homem agressivo... que quando a vítima estava morando na casa do informante, o acusado ligou ameaçando o informante... o acusado nunca ressarciu os prejuízos causados a vítima no incêndio... que a lesão que a vítima sofreu na coluna deve ter ocorrido antes da copa, no ano 2000 ou 2001; que a vítima ficou incapacitada por mais de 30 dias, uma vez que para se locomover precisava da ajuda da filha; que a vítima guardava muitos documentos dentro do guarda roupas que foi incendiado, que os documentos foram destruídos, queimados. (...) que o informante nunca viu a vítima alterada, embriagada por ingerir bebidas alcoólicas ....o acusado não ajudou a vítima na recuperação, após os fatos que ocasionaram a lesão na coluna da vítima".[10]

Conforme se fez constar no termo da referida audiência, a pedido desta representante do Ministério Público, consignou-se o seguinte: "A VÍTIMA J. J. M. DISSE SENTIR-SE INTIMIDADA EM SER OUVIDA NA PRESENÇA DO ACUSADO... E ASSIM, NOS TERMOS DO ARTIGO 217 DO CPP, A MM.ª JUÍZA DETERMINOU QUE O ACUSADO FOSSE RETIRADO DA SALA DE AUDIÊNCIAS, PARA NÃO PREJUDICAR OU INFLUENCIAR O DEPOIMENTO DA VÍTIMA".

Face o grande temor da vítima em relação ao acusado que continuava lhe ameaçando, o Ministério Público requereu a prisão preventiva do mesmo, o que, contudo, foi indeferido pelo Juízo, que fundamentou sua decisão afirmando, dentre outras coisas que: "dos autos não consta que o acusado é dado à prática de crimes, uma vez que o ÚNICO DELITO por ele praticado é o que ora se investiga (fls. 07), está, pois, prejudicada a possibilidade da decretação de sua prisão preventiva... Com isso, constato que tais requisitos estão ausentes, tanto que a própria vítima e ex-companheira do acusado, Sra. J. J. M. ao prestar suas declarações em Juízo afirmou "...que na data dos fatos o réu aparentava ter ingerido bebidas alcoólicas" , que "quando o acusado estava sóbrio ele ajudava a informante em tudo em casa, e na sua recuperação dizendo que ela voltaria a andar, a incentivando" e " que ele a ajudou muito conversando". [11]

Analise-se a irrefletida "justificativa" da magistrada para a conduta reprovável do agressor, primeiro deixa claro que embora ele responda pela prática de diversos fatos típicos e antijurídicos, criminoso ela não o considera, depois "justifica" a agressão e o ato dele atear fogo na casa da vítima pela ingestão VOLUNTÁRIA de bebida alcoólica e por fim, de maneira estereotipada, ignorando que foram as agressões do réu que colocaram a vítima por muito tempo em cadeira de rodas, minimiza seus atos perversos, elogiando-o e enaltecendo-o expressamente ao destacar que ele auxiliara a vítima após a agressão e a incentivava dizendo que voltaria a andar.
Demonstrou-se imprópria a tolerância da juíza para com as causas de ferocidade de gênero e sua patente preterição quanto a seus perversos desdobramentos, atitude inconciliável com sua específica área de atuação, na qual exercia função de colossal relevância, onde muito mais que meros conhecimentos jurídicos haverão de ser exigidos, observando-se no caso sob análise, em que pese os incontroversos requintes de crueldades perpetradas pelo agressor contra vítima indefesa, a julgadora optou por ignorar a dor e as mazelas da mulher agredida e centrar sua decisão em atitudes de cunho subjetivo, para "amparar" à sua maneira, quiçá inconscientemente, as ações abusivas do réu, ressaltando o comportamento "bondoso" do mesmo para com a vítima após as agressões.

Inconformado, o Ministério Público ajuizou recurso em sentido estrito, que, contudo, infelizmente, fora improvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso[12], em decisão contrária ao parecer escrito da Procuradoria Geral de Justiça, revelando a ampla permissividade quanto à prática deviolência domésticaevidenciadas por algumas autoridades, homens e mulheres, vez que no processo supracitado, por exemplo, a magistrada jamais enxergou qualquer equívoco nos fundamentos discriminatórios que embasaram sua decisão.

Eis o que as célebres autoras Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian afirmam revelar a ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários (as) operadores (as) do Direito, que mais do que seguir o princípio clássico da doutrina jurídico-penal - in dubio pro reo - valem-se precipuamente da normativa social segundo seus próprios e subjetivos valores, que definiram magnificamente como: in dubio pro stereotypo.[13]

2 - A oposição injustificada dos operadores jurídicos quanto à interpretação lógica e conseqüente aceitação da imperativa necessidade de aplicação dos dispositivos insertos na Lei Maria da Penha.
Voltemos nosso olhar ao passado para recordar da chocante fala de um jornalista, amplamente divulgada e aplaudida na época, num caso célebre em que também a vítima foi tida como "autora" de sua própria morte: "Eu vi o corpo da moça estendido no mármore da delegacia de Cabo Frio. Parecia ao mesmo tempo uma criança e boneca enorme quebrada...mas desde o momento em que vi o cadáver, tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu assassino".[14]

Eis o pensamento predominante até hoje entre os juristas e aplicadores do direito em nosso país, comprovando que para a sociedade brasileira a mulher ainda é tida como propriedade do homem, consubstanciando o que Streck definiu divinamente como verdadeira "coisificação do ser humano do gênero feminino".[15]

Sobre a justificativa do juiz do juizado especial criminal que entendeu que os homens também fariam jus às normas protetoras elencadas na Lei Maria da Penha, em razão da constatação formal-constitucional simplista e idealizaria de que "todos são iguais perante a lei", recorro novamente aos comentários de Streck, que ao ser perquirido acerca dos avanços femininos na sociedade brasileira, indagou: "de que mulher vocês estão falando, já que estamos em um país que pode ser dividido, por faixa de renda per capita, em Itália, Colômbia, Quênia e Somália...
Nesse contexto, por certo estavam a falar da mulher 'italiana'...! Mas, pergunto: e o que sobra para a 'queniana' ou a 'somalis' brasileiras? Ora, não existe 'a mulher'. Existem 'várias mulheres'... Tais generalizações são metafísicas, que provocam o esquecimento daquilo que na hermenêutica se chama de diferença ontológica. Dito de outro modo, quando alguém fala da mulher está falando de forma estereotipada (raciocínio feito no varejo e transportado para o atacado).
E, convenhamos, não é de bom alvitre que se analise um tema de tamanha relevância de maneira estereotipada! Como muito bem diz Giorgio Agamben: "o Direito não possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos homens". É o modo-de-ser-no-mundo do intérprete que será a condição de possibilidade de seu olhar do Direito. Esse olhar é interpretação." [16]

Segue o autor:

"(...) na medida em que falamos do mundo a partir da tradição, é inexorável que a visão dos operadores jurídicos acerca dos textos normativos e do que eles significam dependerá dos pré-juízos que antecipam o sentido do mundo onde vivemos. Sendo a dogmática jurídica um paradigma, no interior do qual o papel da mulher tem sido relegado a um plano secundário, a ponto da doutrina e da jurisprudência durante décadas defenderem a possibilidade de o marido forçar a esposa a com ele praticar sexo, esse imaginário traz conseqüências – porque instituinte da existencialidade dos operadores ... A doutrina e a jurisprudência ainda permanecerem reféns de um imaginário que nega (ainda que implicitamente a partir de um discurso que escamoteia a problemática) à mulher a possibilidade de dispor de seu próprio corpo (questão que tem reflexos na discussão do aborto, que, de uma questão social e moral, transforma-se em uma discussão jurídico-criminal). A disposição do corpo não diz respeito somente à questão da sexualidade. Mais do que isto, é uma questão que envolve o (des)respeito à dignidade humana. É, pois, na abertura, nesse espaço aberto pela crítica hermenêutica, que devemos estabelecer as bases (condições de possibilidade) para desvelar o ainda não-desvelado dessa conquista da civilização, que é o respeito à condição de gênero (...). Nessa seara, não é difícil encontrar julgados que reproduzem o imaginário acerca de como-se-vê-a-mulher-em-uma-sociedade-díspar-como-a-brasileira (...) de nada valem ementas jurisprudenciais, se estas vierem desacompanhadas dos respectivos fundamentos. Essa problemática assume contornos dramáticos no interior da crise de paradigmas que atravessa a dogmática jurídica... "As ementas dos julgados de nossos tribunais intrinsecamente apresentam problemas a partir da reprodução de um imaginário que coloca a mulher em posição absoluta e escandalosamente secundária ".[17]

Recentemente, um juiz de Minas Gerais, entrou para a história das decisões judiciais teratológicas por ter sido suficientemente "tolo" ou "ingênuo" de tornar público, colocando no papel o real pensamento de muitos de seus pares (juízes, promotores, defensores e advogados), em decisão que certamente já se viu ou ouviu falar, mas que sempre vale "a pena" ser lida novamente:

"Esta "Lei Maria da Penha" — como posta ou editada — é, portanto de uma heresia manifesta. Herética porque é antiética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem.
Deus então, irado, vaticinou, para ambos. E para a mulher, disse:"(...) o teu desejo será para o teu marido e ele te dominará (...)" (...) Por causa da maldade do "bicho" Homem, a Verdade foi então por ele interpretada segundo as suas maldades e sobreveio o caos, culminando — na relação entre homem e mulher, que domina o mundo — nesta preconceituosa lei.
(...) o direito natural e próprio em cada um destes seres, nos conduz à conclusão bem diversa. Por isso — e na esteira destes raciocínios — dou-me o direito de ir mais longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi Homem! Á própria Maria — inobstante sua santidade, o respeito ao seu sofrimento (que inclusive a credenciou como "advogada" nossa diante do Tribunal Divino) — Jesus ainda assim a advertiu, para que também as coisas fossem postas cada uma em seu devido lugar: "que tenho contigo, mulher?".
E certamente por isto a mulher guarda em seus arquétipos inconscientes sua disposição com o homem tolo e emocionalmente frágil, porque foi muito também por isso que tudo isso começou. A mulher moderna — dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a não ser dos espermatozóides — assim só o é porque se frustrou como mulher, como ser feminino. Tanto isto é verdade — respeitosamente — que aquela que encontrar o homem de sua vida, aquele que a complete por inteiro, que a satisfaça como ser e principalmente como ser sensual, esta mulher tenderá a abrir mão de tudo (ou de muito), no sentido dessa "igualdade" que hipocritamente e demagogicamente se está a lhe conferir. Isto porque a mulher quer ser amada. Só isso. Nada mais. Só que "só isso" não é nada fácil para as exigências masculinas. Por isso que as fragilidades do homem têm de ser reguladas, assistidas e normatizadas, também.[18] Sob pena de se configurar um desequilíbrio que, além de inconstitucional, o mais grave, gerará desarmonia, que é tudo o que afinal o Estado não quer.
Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas desta lei absurda o homem terá de se manter tolo, mole — no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões — dependente, longe, portanto de ser um homem de verdade, másculo (contudo gentil), como certamente toda mulher quer que seja o homem que escolheu amar. Mas poder-se-ia dizer que um homem assim não será alvo desta lei. Mas o será assim e o é sim. Porque ao homem desta lei não será dado o direito de errar.

Portanto, é preciso que se restabeleça a verdade. A verdade histórica inclusive e as lições que ele nos deixou e nos deixa. Numa palavra, o equilíbrio enfim, Isto porque se a reação feminina ao cruel domínio masculino restou compreensível, um erro não deverá justificar o outro, e sim nos conduzir ao equilíbrio. Mas o que está se vendo é o homem — em sua secular tolice — deixando-se levar, auto-flagelando-se em seu mórbido e tolo sentimento de culpa.
Enfim! Todas estas razões históricas, filosóficas e psicossociais, ao invés de nos conduzir ao equilíbrio, ao contrário vêm para culminar nesta lei absurda, que a confusão, certamente está rindo à toa! Porque a vingar este conjunto normativo de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras — porque sem pais; o homem subjugado; sem preconceito, como vimos, não significa sem ética — a adoção por homossexuais e o "casamento" deles, como mais um exemplo. Tudo em nome de uma igualdade cujo conceito tem sido prostituído em nome de uma "sociedade igualitária".

Não! O mundo é e deve continuar sendo masculino, ou de prevalência masculina, afinal. Pois se os direitos são iguais — porque são — cada um, contudo, em seu ser, pois as funções são naturalmente diferentes. Se se prostitui a essência, os frutos também serão. Se o ser for conspurcado, suas funções também o serão. E instalar-se-á o caos.
É, portanto por tudo isso que de nossa parte concluímos que do ponto de vista ético, moral, filosófico, religioso e até histórico a chamada "Lei Maria da Penha" é um monstrengo tinhoso. E essas digressões não as fazem à toa — este texto normativo que nos obrigou inexoravelmente a tanto.
Mas quanto aos seus aspectos jurídico-constitucionais, o "estrago" não é menos flagrante.
(...) na medida em que o Poder Público — por falta de orientação legislativa — não tem condições de se estruturar para prestar assistência também ao homem, acaso, em suas relações domésticas e familiares, se sentir vítima das mesmas ou semelhantes violências. A Lei em exame, portanto, é discriminatória. E não só literalmente como, especialmente, em toda a sua espinha dorsal normativa.

O art. 2° diz "Toda mulher (...)". Por que não o homem também, ali, naquelas disposições?
O art. 3° diz "Serão assegurados às mulheres (...)". Porque não ao homem também? O parágrafo 1° do mesmo art. 3° diz "O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares (...)" (grifei). Mas porque não dos homens também? O art. 5° diz que "configura violência doméstica e familiar contra a mulher (...)". Outro absurdo: de tais violências não é ou não pode ser vítima também o homem? O próprio e malsinado art. 7° — que define as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher — delas não pode ser vítima também o homem? O art. 6° diz que "A violência familiar e doméstica contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos" Que absurdo! A violência contra o homem não é forma também de violação de seus "direitos humanos", se afinal constatada efetivamente a violência, e ainda que definida segundo as peculiaridades masculinas? (...) A lei, no entanto, ignora toda essa rica gama de nuances e seleciona que só a mulher pode ser vítima de violência física, psicológica e patrimonial nas relações domésticas e familiares".[19]

Atente-se para o fato de que, tanto neste caso como nos demais aludidos, não se contesta a soberania da independência funcional do julgador, detentor de inegável faculdade de decidir conforme seu livre convencimento, mas se repudia com veemência os termos preconceituosos e ofensivos utilizados na fundamentação das decisões, com evidentes e inoportunos excessos de linguagem que deveriam ser evitados.

3. A aversão demonstrada pelos agressores de condições econômicas privilegiadas aos ditames da Lei 11.340/2006 e comentários sobre a constatação de que a prerrogativa de "independência funcional" garantida aos julgadores é sopesada de forma diversa e subjetiva, que tendo em conta as peculiaridades dos envolvidos, é assegurada ou rechaçada.
No uso de minhas atribuições legais, atuando como representante do Ministério Público junto às Varas Especializadas de Violência Doméstica de Cuiabá-MT, desde o dia 22 de Setembro de 2006, após a entrada em vigor da Lei 11.340/ 2006, sei que não é exagero afirmar que há uma verdadeira "conspiração" contra a Lei Maria da Penha, que chega a ser até mesmo ignorada por alguns operadores do direito que possuem o dever legal de executá-la, optando por entendimentos superficiais que se revelam "convenientes", por desejarem intimamente que tais casos continuem sob a égide de normas descriminalizadoras, constrita ao reduto doméstico ou familiar.

A par disso, outra questão relevante é o patente desassossego de muitos réus, sobretudo, os mais abastados e, seus respectivos advogados, que, não raras vezes, desconhecem completamente o teor da Lei 11.340/2006 e, se hasteiam no direito de reiterada e levianamente, fazer comentários injuriosos e despropositados contra as autoridades que, por dever de ofício, as executam da forma impessoal e técnica idealizada pelo legislador, destacando evidente inconformismo com a situação jurídica que lhes é imposta pela lei. Aliás, neste aspecto, réus instruídos e de classe social privilegiada revelam-se mais complexos que os modestos, que demonstram mais sensatez e sabedoria do que os supostamente mais doutrinados.
Ninguém em sã consciência, nem mesmo o operador ou jurista mais "conservador" haverá de negar que os "fundamentos" utilizados pelo magistrado de Minas Gerais na decisão anteriormente mencionada, revelaram ultrajante preconceito e discriminação a todo ser humano de gênero feminino. Contudo, em que pese seus afrontosos baldrames "jurídicos", restou-lhe assegurado de forma soberana sua independência funcional, deliberando-se pela desnecessidade de qualquer tipo de punição administrativa para o prolator da acintosa decisão, sujeita à reforma por meio dos recursos legalmente previstos em lei.

Entretanto, no Estado de Mato Grosso, pioneiro na implementação e efetivo combate à violência doméstica contra a mulher[20], graças à iniciativa da grande estudiosa das questões de gênero e dedicada defensora dos direitos humanos, desembargadora Shelma Lombardi de Kato, assistiu-se estarrecido a degradação abominável da celebrada juíza e jurista Amini Haddad Campos, praticados afrontosamente por réus de classes sociais opulentas, inconformados de assumirem o efetivo papel de "agressores" em seus respectivos processos criminais, provenientes da prática dos fatos típicos e antijurídicos que lhe foram imputados.
Execrada publicamente em razão de fatos fictícios criados por agressores que possuíam óbvio interesse em desqualificar a séria, respeitável e imparcial julgadora, diferentemente do posicionamento esposado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em favor do juiz prolator "daquela" decisão, à juíza Amini Haddad não foi garantida a indispensável "independência funcional", permitindo-se inexplicavelmente que réus abusivos e desrespeitosos passassem a ofendê-la publicamente de modo aviltante e inadequadamente pessoal, mesmo sendo inconcebível que uma juíza que cumpriu o seu dever, estrita e legalmente, transforme-se, sem justa causa, em alvo de processo disciplinar tão somente porque seus superiores não concordaram com suas decisões.

Ressalto o caso de um advogado denunciado pela prática, em tese, de crimes gravíssimos[21], que após ter sua prisão preventiva legalmente decretada pela julgadora no livre exercício de suas atribuições legais, ofendeu-a acintosamente em "representação" atípica, desprovida de qualquer fundamento técnico ou jurídico, que serviu apenas para que pudesse destilar contra ela sua ira insana, onde comparou a juíza aos "crápulas da ditadura", chamando-a de "inquisidora" e "ditadora", afirmando de maneira desonrosa que durante audiência sem qualquer ilegalidade ou abuso, ela teria feito um "show" e que sua apresentação teria sido "PATÉTICA".

O réu/causídico asseverou em petição escrita, que a juíza não possuiria "preparo emocional", e titulou a sala de audiências em que atuava a magistrada de: "Gaiola das Loucas"... Afirmando, com todas as letras (pasmem!) que a magistrada teria "problemas pessoais, SEXUAIS, familiares e de formação educacional e técnica", além de chamá-la de fraca e desequilibrada, para ao final encerrar sua representação "RECOMENDANDO" IRONICAMENTE que referida magistrada fosse encaminhada para acompanhamento psicológico na própria vara do juízo em que atuava.
Infelizmente este é só um dos muitos casos em que a referida juíza foi inexplicavelmente ofendida por réus que respondem a processos criminais pela prática de violência doméstica e familiar contra mulheres, que me permito tornar público[22], com a aquiescência da ofendida, por existirem momentos em que a única forma capaz de nos resgatar a dignidade é a exposição verdadeira das mazelas que o preconceito inflige a TODAS AS MULHERES, com a esperança de que a vergonha dos omissos e o desejável arrependimento dos verdugos poupem outras mulheres de tamanho infortúnio em razão do mero exercício independente de suas atribuições legais.

É absolutamente espantoso que uma "representação" com termos tão repulsivos e ignóbeis NÃO TENHA SIDO ARQUIVADA DE PLANO e encaminhada para devida apuração da falta funcional cometida pelo advogado abusivo. Contudo, o que absolutamente não se compreende é o fato de tal "representação", amparada tão somente nas assertivas levianas, parciais e inverídicas do próprio réu, sem qualquer indício de prova, ter bastadopara que instauração de sindicância contra a juíza, na qual a mesma se viu obrigada a custear honorários advocatícios para promoção da própria defesa (?), além de sofrer verdadeira humilhação (injusta e desnecessária), consignando-se que mesmo diante das palavras injuriosas relatadas, lhe foi negado, pela D. Corregedoria, até mesmo o direito de ver tais termos vexatórios riscados da apócrifa e censurável "representação" produzida pelo réu na defesa de seus egoísticos interesses.
Tais fatos devem nos levar a uma inadiável reflexão: Por que as mulheres, mesmo exercendo cargos de tamanha relevância, como no caso da juíza insultada, ainda são ultrajadas de forma vil, leviana e humilhante em decorrência do mero cumprimento de seus deveres funcionais? Na defesa de vítimas em casos gravíssimos, pessoalmente já sofri diversos tipos de abusos, alguns velados, outros explícitos, tais como "ameaças" de representações e mesmo "representações", todas por fatos atípicos, simplesmente por não permitir a banalização da violência doméstica contra mulheres. Todavia, felizmente, no Ministério Público do Estado de Mato Grosso sempre me foram assegurados o livre exercício das prerrogativas constitucionais de autonomia e independência funcional.

Nota-se claramente no caso acima destacado que o réu/advogado não teceu mera crítica à Ilustre juíza, indo muito além daquilo que chamamos de "animus narrandi" ou "animus defendendi", sendo certo que seu reprovável excesso de linguagem teve a clara intenção de macular a honra da magistrada ("animus injuriandi"), já que as palavras aviltantes utilizadas para ofender a magistrada não podem ser consideradas apenas expressões de mau gosto ou deseducadas, mas séria falta de ética e decoro que constituem verdadeira discriminação de gênero em desfavor da julgadora, ou se tem dúvida de que se fosse um juiz do sexo masculino a tratar do caso, ao mesmo certamente não teria sido dispensado tão indigno tratamento? Ou será que o advogado ofensor haveria de relatar que um juiz (homem) teria problemas de ordem SEXUAL? Ou recomendar ao mesmo tratamento psicológico junto à equipe multidisciplinar do seu próprio Juízo? A resposta a tais indagações indubitavelmente é negativa e estou certa de que este absurdo só foi praticado contra a juíza porque ela é mulher e o réu preconceituoso e agressivo não aceitou que uma mulher o advertisse e conduzisse de forma soberana, independente e técnica os diversos processos criminais existentes em seu desfavor.

Foi verdadeiramente assombroso o fato da magistrada, apesar de deter, esta, conhecimento técnico, com 07 especializações, livros publicados, mestrado em Direito Constitucional pela PUC/RJ, já estando em fase de doutoramento, com reconhecido trabalho nacional e competência incontestável, NÃO TER RECEBIDO qualquer apoio da E. Corregedoria da Justiça do Tribunal Mato-Grossense e da maioria dos demais, pois foram poucos e preciosos os membros daquela Corte, que apreenderam o absurdo sofrimento imposto à mesma. Isso, apesar de ser do interesse de todos os seus componentes os indispensáveis cuidados para assegurar a independência das decisões judiciais.

Destarte, este desastroso episódio revela que alguns componentes da própria magistratura representam paradoxalmente, uma ameaça à independência do julgador, questionando inadequadamente suas razões de decidir e o conteúdo de decisões formalmente apropriadas, sem esquecer o fato de estarem sujeitas à revisão pelas vias adequadas, como se arvorando numa espécie de sensores ou críticos que colocam em risco as atividades jurisdicionais, ao ferir o comando da independência do magistrado, imperativo para a concretização do Estado Democrático de Direito.

Sobre o assunto, tomo por apropriadas as palavras de um componente do Poder Judiciário: "tenta-se amordaçar a magistratura brasileira (...) ameaça-se o magistrado com sucessivos processos disciplinares, tomando-lhe tempo para responder a procedimentos natimortos em razão das aberrações contidas, mas recebidos e levados à instrução. A única coisa que não se busca é a oferta de condições dignas de trabalho ou se o faz de forma meramente secundária. (...) Os limites de ação disciplinar dos tribunais e do CNJ são os encartados na constituição, não se podendo admitir, sob qualquer argumento que seja, se venha a tolher e limitar poder de decisão do juiz, adstrito apenas à lei e ao seu convencimento(...) Interpretação da norma legal jamais poderá ser focada como incapacidade, incompetência ou despreparo do juiz, eis que, se assim for, todo pensamento diverso do juiz também deverá ser visto como estapafúrdio, negando-se os mais elementares e básicos princípios da ciência do direito"[23].

Esses procedimentos anômalos, atípicos desde o nascedouro, externam a supressão de todas as prerrogativas constitucionais da juíza, inacreditavelmente transformada em ré por alguns de seus pares, sob o olhar compassivo e omisso de muitos outros, que até a presente data não manifestaram qualquer discordância com a humilhação pública que de forma indireta também os atingem como autoridades judicantes[24], o que por certo haverá de decrescer os méritos da biografia daqueles que se recusaram a fazer alguma coisa, qualquer coisa, capaz de diminuir a ignomínia que tais fatos representam.

4- A questão da violência de gênero e os fundamentos de validade legais e constitucionais da Lei Maria da Penha.
Retornando à análise da decisão do juiz de Minas Gerais, afrontosa, a seu modo, a capacidade intelectiva dos demais magistrados brasileiros, vez que verdadeiramente não representa os valores e conhecimentos incontestáveis da imensa maioria de nossos corajosos e cultos juízes, destacamos, ainda, sua ausência de correlação lógica, já que ao afirmar expressamente que a lei atacada teria disposto que somente a violência doméstica praticada contra a mulher é que constituiria ilícito penal, o julgador demonstra alarmante falta de conhecimento técnico, pois parece não ter constatando que a Lei Maria da Penha não criou um só tipo penal, que continuaram os mesmos que sempre foram, alcançando homens e mulheres indistintamente, sem fazer qualquer distinção, tanto para figurarem no pólo passivo como no ativo, quer quanto ao tipo penal ao qual se responderá, tal como em relação à pena prevista em lei para tais delitos, se tal diferença existisse, aí sim, poder-se-ia falar em alguma desigualdade, mas o grande problema é a ausência de conhecimento de alguns operadores jurídicos, que, resistentes a qualquer tipo de mudança, passam a criticar normas, antes mesmo de conhecê-las.

Portanto, àqueles que porventura ainda não saibam a Lei Maria da Penha, sem definir qualquer tipo penal que exigisse como sujeito passivo exclusivamente pessoa do sexo feminino, criou tão somente mero procedimento, com vista à peculiar e necessária proteção às maiores vítimas de violência doméstica e familiar, que incontestavelmente são AS MULHERES, fato que não se pode negar, já que para isso temos dados numéricos e em números até os operadores jurídicos mais resistentes crêem, posto que a violência praticada contra as mulheres, conhecida como violência de gênero, constitui na razão implícita do número estarrecedor de casos de agressões físicas, sexuais, psicológicas, morais e patrimoniais, perpetrados em desfavor de mulheres, revelando incontestável desigualdade de poder entre gêneros (masculino e feminino).

Dados estarrecedores da OMS (Organização Mundial de Saúde), inserto no relatório divulgado pela Anistia Internacional em 05/03/2004, apontam que 70% dos assassinatos de mulheres no mundo são cometidos por homens com quem elas tinham ou tiveram algum envolvimento amoroso e segundo investigação feita pela ONG Human Rights Watch, em nosso país, concluiu-se que de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas.[25]

No Brasil, pesquisa realizada pelo Senado Federal no ano de 2005, sobre violência doméstica contra a mulher, revelou que 95% das mulheres pesquisadas afirmaram ser muito importante ou importante a criação ainda de uma legislação específica que proteja ainda mais a mulher no Brasil. Enquanto para 92% das mulheres seria importante ou muito importante a discussão sobre os direitos femininos no Congresso Nacional.Sendo que, das mulheres que reconhecem nesta pesquisa que já sofreram violência doméstica, 66% responderam ser o marido/companheiro o autor da agressão, tendo concluído o relatório do Senado Federal que: "dentre todos os tipos de violência contra a mulher, existentes no mundo, aquela praticada no ambiente familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como local acolhedor e de conforto passa a ser, nestes casos, um ambiente de perigo contínuo que resulta num estado de medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de emoções e relações afetivas, a violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa sociedade".[26]

Todas as pesquisas demonstram que o lar, o âmbito doméstico e familiar, na maioria dos casos, institui o local de risco para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Conforme Soares: "A ameaça do ponto de vista das mulheres, não vem de fora, quando se trata de agressão física. Está na casa, não na rua; é episódio inscrito em dinâmicas típicas da vida privada, o que evidentemente não lhe reduz a gravidade, antes a aprofunda".[27]

Segundo a pesquisa realizada pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo,[28] no ano 2001, a cada 15 segundos, uma mulher é espancada por um homem no Brasil, apontando o perfil do agressor para o marido ou companheiro como principal autor em todas as modalidades de violência investigadas e as respostas encontradas por este estudo apontaram para a necessidade de criação de abrigos para acolher as mulheres vítimas, delegacias especializadas, serviço telefônico gratuito para denúncia, além de se dispor de atendimento psicológico para as mulheres vítimas de violência doméstica.
O Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica, perdendo cerca de 10,5% do seu PIB em decorrência desse grave problema, considerado de saúde pública, já que as vítimas faltam ao trabalho e fazem uso de hospitais e medicamentos fornecidos pelo poder público.
Até a promulgação da Lei Maria da Penha, que acarretou um acalorado debate sobre o tema, a violência de gênero sofria de uma espécie de "invisibilidade", difundida pela idéia nefasta de que a violência entre parceiros íntimos ou pessoas da mesma família, constituía um problema privado, que só aos envolvidos interessava o que era perfeitamente possível pelas leis descriminalizadoras vigentes até então, que efetivamente não puniam os agressores, nem tratavam as vítimas, permitindo a proliferação da violência, posto que tão somente devolviam o problema para ser resolvido em casa, dando-se ainda mais poder ao agressor, já que os operadores jurídicos, muito ocupados em outras tarefas, tinham sempre assuntos mais "importantes" a tratar.
Todo este descaso com as mulheres vítimas de violência, perpetrado pelos operadores jurídicos que atuavam perante os Juizados Especiais Criminais, acabou por levar à promulgação da Lei 11.340/2006, antiga exigência de Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, que se destinam a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, como a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, que conta hoje com 165 Estados signatários, sendo que o Brasil a ratificou em 1984[29], que se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade sob tutelas diversa, tanto repressiva ou punitiva, com a proibição da discriminação e a positiva, destinada à promoção da igualdade, objetivando além de erradicar a discriminação contra a mulher e as suas causas, também estimular estratégias de promoção da igualdade entre homens e mulheres, com políticas compensatórias, visando à aceleração da igualdade enquanto processo, mediante a adoção de medidas afirmativas, como as previstas na Lei Maria da Penha, que se consubstanciam como medidas especiais e transitórias, destinadas ao combate das desigualdades que afligem as mulheres de forma geral.
Assim, conclui-se que, para garantia da igualdade não bastava a proibição da ação discriminatória, efetuada por meio da legislação repressiva, sendo essencial à implementação de políticas públicas capazes de incentivar a inclusão social dos grupos reconhecidamente vulneráveis. Leda Maria Hermann, ao comentar a respeito da Convenção, elucida: "A Convenção inovou ao prever a adoção, pelos países parte, de normas de discriminação positiva, ou seja, de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher (artigo 4º, item 1). A Lei Maria da Penha, por seu caráter protetivo voltado especificamente à mulher, constitui instrumento jurídico legal compatível com a previsão internacional em tela."[30]

No âmbito do sistema regional da Organização dos Estados Americanos – OEA, de proteção aos direitos humanos, as mulheres brasileiras dispõem de uma Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida internamente como Convenção de Belém do Pará, de 1994, ratificada pelo Brasil em 1995 que estabelece que toda mulher possui o direito de viver livre da violência e de qualquer forma de discriminação. (artigo 6º)

O artigo 1º da Convenção define violência contra a mulher como:"qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada", estabelecendo, ainda, que esta violência pode ocorrer "no âmbito da família ou na unidade doméstica, ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não da mesma residência com a mulher, incluindo, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual" (art. 2º, a).

Atente-se para a importância desta Convenção, ao incorporar o conceito de gênero na definição de violência contra a mulher, além de descrever as várias formas de violência, como física, sexual ou psicológica, bem como que pode ocorrer tanto no âmbito público como na esfera privada, abarcando um amplo conceito de violência doméstica e familiar, haja vista a constatação estatística de que são nos domicílios familiares que se dão à maioria dos crimes que as vitimam.
Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Brasil se comprometeu a incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas para a efetivação destas medidas (exatamente como as previstas pela Lei 11.340/2006); tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas do tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher (razão pela qual foi vedada a aplicação da Lei 9.099/1995, nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41 da Lei em comento); estabelecer procedimentos jurídicos adequados e eficazes para a mulher que tenha sido submetida à violência, dentre os quais as adequadas medidas de proteção efetiva (previstas no artigo 18 e outros da Lei Maria da Penha); além de estabelecer os mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar à mulher vítima da violência o efetivo acesso ao ressarcimento dos danos que porventura lhe forem causados.

O parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, dispôs que os direitos e garantias nela expresso: "não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", dando margem à entrada no rol dos direitos e garantias consagrados pela Constituição Federal, de outros direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais, revelando o caráter não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais, admitindo expressamente que tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em idêntico nível com o das normas constitucionais vigentes.
Flávia Piovesan afirma que:
"relativamente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Constituição brasileira de 1988, nos termos do art. 5º, § 1º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados, o que reflete a adoção da concepção monista. Ademais, como apreciado no tópico, a Carta de 1988 confere aos tratados de direitos humanos o status de norma constitucional, por força do art. 5º, § 2º" [31]

Talvez para que não houvesse qualquer dúvida sobre o caráter dos tratados e convenções que subsidiaram a promulgação da Lei 11.340/2006, conste expressamente do seu artigo 6º que: "A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos", com status de norma constitucional, portanto. Por sua vez, o art. 226 da Constituição Federal estabelece que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, enquanto seu § 8º determina que o Estado assegure a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Assim, estudando atentamente a luta das mulheres contra a desigualdade de gênero que desencadeia a violência doméstica e familiar, somos obrigados a concluir que a promulgação da Lei 11.340/2006, ainda que tardia (já que o Brasil é o 18º país da América Latina a efetivar uma lei com tais características), foi elaborada para atender aos ditames constitucionais vigentes, tratando-se de medida de ação afirmativa, que visa enfrentar com ações adequadas a questão, tanto servindo para a punição do agressor, como para tratar a vítima e seus familiares, inclusive o próprio agressor, a fim de se buscar e efetiva diminuição da desigualdade e da violência em si.

Com efeito, o art. 3º da Constituição Federal, estatui que a República Federativa do Brasil tenha como objetivos fundamentais: I – construiruma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicara pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Desse modo, a norma constitucional admitiu expressamente a existência das desigualdades, ademais inegáveis, estabelecendo que os alcances dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil exigem comportamentos ativos e pedem ações afirmativas, como as insertas na Lei 11.340/2006.

Parece-nos claro que o ordenamento jurídico brasileiro não só permite ao Estado a promoção de políticas de ações afirmativas, como as impõe, a fim de que sejam alcançados os direitos fundamentais baseados no artigo 3º da Constituição Federal, pois na sua redação temos o emprego de verbos como "erradicar, construir, reduzir e promover", devendo o ente público desenvolver um comportamento ativo, positivo e eficaz neste sentido.

De outra parte, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, analisado em conjunto com o art. 3º, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, estabelece que: o Estado garantirá a todos o direito à igualdade, sem ignorar as desigualdades existentes, que motivam, dentre outras medidas, a criação das normas de ação afirmativa, visando o alcance do ideal de igualdade efetivo idealizado pelo legislador constituinte ao descrevê-lo formalmente.

Muito já se disse sobre a desigualdade material existente entre homens e mulheres, cujos dados estatísticos demonstrados certamente serão capazes de convencer até os mais incrédulos que porventura se imaginem vivendo em um país em que tal igualdade seja real, sendo certo que o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente. Constatando-se que não há igualdade de fato entre homens e mulheres, tratarem-se desiguais como se iguais fossem, é que constituiria a verdadeira inconstitucionalidade.

Leda Maria Hermann, ao comentar o artigo 1º da Lei 11.340/226, ressalta:

"A proteção da mulher, preconizada na Lei Maria da Penha, decorre da constatação de sua condição (ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor, no sentido de proporcionar meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanente ao âmbito doméstico e familiar.

Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela "[32].

5. As razões de ordem cultural, implícitas nas decisões dos operadores jurídicos que resistem em garantir às mulheres vítimas de violência doméstica os direitos que lhe foram assegurados por lei e os fundamentos jurídicos que autorizam somente às mulheres uma política especial de proteção de caráter afirmativo.
Portanto, ainda que inegáveis os avanços femininos rumo à igualdade real de gênero, é notório, conforme explicitado no tópico anterior, que as mulheres necessitam, e muito, da proteção especial oferecida hoje pela Lei Maria da Penha. Tão claro, tão simples, e uma enorme quantidade de operadores jurídicos a divergir, insistindo em negar às mulheres o direito de reagir à violência e à efetiva proteção Estatal de seus direitos humanos. A quem interessa manter as mulheres sob controle?

Doutrinadores festejados reiteradamente ensinaram a defender até mesmo os que "matam por amor" [33] e operadores jurídicos conservadores, preconceituosos e de visão limitada e restrita quanto às questões de gênero, perpetraram e perpetram, dia após dia, a institucionalização do poder do homem sobre a mulher. Estariam eles, ao deturparem os dispositivos legais vigentes, defendendo também os seus próprios interesses? Será?

COMO OPERANTE JURÍDICA, OCUPO PRIVILEGIADA COLOCAÇÃO, E CONHEÇO BEM DE PERTO A HISTÓRIA DE VIDA DE ALGUNS DESTES OPERADORES, DAS MAIS DIVERSAS ÁREAS, POIS RECEBO INFORMAÇÕES PREOCUPANTES ACERCA DO QUE SE PASSARIA, EM TESE, DENTRO DE SEUS LARES E TALVEZ OS FATOS OCULTOS NOS BASTIDORES, POR SI SÓ JUSTIFICAM TAMANHA AVERSÃO POR PARTE DE ALGUNS (FELIZMENTE UMA MINORIA) À EFETIVA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM NOSSO PAÍS, ANTE O POSSÍVEL RECEIO DE SE REVELAR O QUE MUITOS GOSTARIAM QUE PERMANECESSE OCULTO PARA TODO E SEMPRE, NOS "PORÕES" E NAS "ALCOVAS", ONDE DIGNIDADE E HONRA VIRAM ELABORADOS "DEFEITOS", PERCALÇOS QUE PRECISAM SER EXTIRPADOS E VERDADES QUE NECESSITAM SER CALADAS, A QUALQUER CUSTO E DE QUALQUER JEITO...

Por tudo que circunda as questões ligadas a discriminação de gênero contra a mulher, a grande maioria dos homens, felizmente bons, justos, generosos e pacíficos, jamais foram contra qualquer dos dispositivos da Lei Maria da Penha, já que por ela não se sentem "ameaçados" e é maravilhoso quando tais homens também atuam como operadores jurídicos e se juntam aos demais defensores das famílias estruturadas e felizes que verdadeiramente merecem ser mantidas.

Assim, é inevitável a conclusão de que respeitadas as regras de conexão e continência, ante a própria causa da existência da Lei Maria da Penha, que indubitavelmente deva ser aplicada tão somente nos casos de violência doméstica e familiar praticados contra MULHER, pela razão pura e simples de que somente as mulheres são vítimas de violência de gênero, o que ocorre em número significativo, que por si só justifica a existência de uma lei especial que as protejam.
Evidentemente, não se nega que os homens podem ser vítimas de violência doméstica, tal como não se ignora que as mulheres são perfeitamente capazes de praticá-las. Contudo, é notório que a quantidade inexpressiva de tais casos comparados àqueles que vitimam mulheres, já que os homens, felizmente para eles, nunca sofreram a famigerada violência de gênero, jamais haveria de justificar a existência de uma lei especial de proteção como a Lei Maria da Penha em prol dos mesmos.

Ademais, como a inédita decisão teria concedido medidas de proteção a fim de impedir a mulher agressora de se aproximar ou manter contato com o homem agredido, sabe-se que não haveria qualquer necessidade de se aplicar a Lei Maria da Penha no caso em exame, porque a Lei dos Juizados Especiais Criminais, no artigo 69, parágrafo único, sem fazer qualquer distinção quanto ao sexo da vítima, é muito clara ao dispor que nos casos de violência doméstica e familiar, o juiz poderá determinar como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência da vítima e dentro deste contexto, também se poderia proibir a aproximação ou contato da autora do fato da residência ou local de trabalho do ofendido.

Portanto, tal decisão carece de amparo legal, além de acirrar ainda mais os ânimos dos litigantes nos casos em que os homens ostentam dificuldades de assumir suas responsabilidades nas agressões, ocasiões em que distorcem os fatos até encontrarem uma maneira de "justificar" para si e para terceiros suas atitudes violentas e abusivas, colocando na própria vítima a culpa e responsabilidade exclusiva pelas agressões por eles perpetradas, episódios em que os agressores encontrarão neste tipo de interpretação judicial extremamente expansiva, mais uma maneira de tumultuar o processo, alterando a situação real, o que, sem dúvidas, poderá servir de argumento para desestimular as mulheres vítimas de violência doméstica de procurarem ajuda, por medo de represálias, razão que torna a decisão ora repudiada bem mais perigosa do que à primeira vista possa parecer.

Concluo afirmando ser imprescindível que todos nós, homens e mulheres que atuamos nas mais diversas áreas e instituições das carreiras jurídicas, bem como fora dela, façamos uma necessária e profunda reflexão sobre o quanto de (pré) conceito, subjetivismo e insensibilidade influenciam nossas manifestações funcionais.

Ao continuarmos ignorando de forma ingênua ou autoritária as evidentes desigualdades do tratamento dispensado a homens e mulheres em todos os tempos e na atualidade, estaremos de forma expressa ou velada negando sem êxito a história de subjugação do feminino aos ditames masculinos e transformando gritantes diferenças culturais de gênero (masculino e feminino) em uma estereotipada e ridicularizada guerra entre sexos (homem e mulher), diante de um injustificado e "oculto" receio de que o "mundo masculino" esteja ameaçado pela "ditadura do feminino", que alguns menos atentos vêem nos dispositivos da Lei Maria da Penha, avançaremos sem entender o sentido e a origem de tanta violência contra mulheres, sendo certo que deste modo também não conseguiremos combatê-la, numa contenda desgastante e inacabável em que, certamente, não haverá vencedores, já que um gênero carece indubitavelmente do outro, para a própria sobrevivência. [34]

* Promotora de Justiça do Estado de Mato Grosso; Titular da 15ª Promotoria Criminal Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá-MT;
Escritora e Palestrante de âmbito nacional, com atuação exitosa reconhecida nacionalmente na área, promove cursos de capacitação para operadores jurídicos da Lei Maria da Penha em todo o país na área de violência de gênero; direitos humanos das mulheres; violência doméstica contra mulher e Lei Maria da Penha; Co-autora, juntamente com a Juíza Amini Haddad Campos, do livro Direitos Humanos das Mulheres, comentários à Lei 11.340/2008(Lei Maria da Penha), Juruá Editora, lançado em 2006; Colaboradora do livro de autoria múltipla denominado: "Violência Doméstica – Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar", Editora Lumen Juris,2008, ", escrito em parceria com diversos autores reconhecidos nacionalmente em suas áreas de atuação, tais como: Carmen Lucia Antunes Rocha - Ministra do Supremo Tribunal Federal/STF; Amini Haddad Campos- Juíza de Direito-TJ/MT;Lourdes Bandeira – Socióloga. Professora do Departamento de Sociologia/UnB; Fausto Rodrigues de Lima - Promotor de Justiça. Membro do Núcleo de Gênero do MPDFT e muitos outros profissionais da área médica, jurídica, psicológica e social; Autora do artigo "A prisão preventiva nas infrações cometidas com violência doméstica e familiar contra a mulher", publicado pelo site WWW.direitonet.com.br em Outubro de 2007; Autora do artigo "A natureza humana prefere a desgraça à mudança", publicado pela ONG AGENDE, na campanha nacional de 2007 "16 Dias de Ativismo Pelo Fim da Violência Contra as mulheres', DISPONÍVEL no site WWW.campanha16dias.org.br desde novembro de 2007; Autora do artigo "O tipo de ação penal nos crimes de lesão corporal leve praticado com violência doméstica e familiar", publicado pelos sites: WWW.jusnavegandi.com.br;WWW.direitonet.com.br e WWW.iurismundi.com.br, dentre outros, em Março de 2008; Autora do artigo "Da constitucionalidade da Lei Maria da Penha e da Necessidade de sua efetiva implementação", publicado na Revista Jurídica do Ministério Público de Mato Grosso, Edição de Janeiro a Junho de 2008; Autora do artigo "O Medo Rompe as Barreiras do Silêncio e Invade o Poder Judiciário", publicado pelos sites: WWW.casajurica.com.br e WWW.webartigos.com, dentre outros, em Setembro de 2008.


Lindinalva Rodrigues Corrêa é Promotora de Justiça no Estado de Mato Grosso, atua como Promotora e Coordenadora das Promotorias Especializadas no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá-MT; é co-autora do livro “Direitos Humanos das Mulheres”. Comentários à Lei Maria da Penha. Juruá Editora. 2007; é autora colaboradora do livro “Violência Doméstica – Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar”, editora Lumen Juris, 2008; é autora, executora e coordenadora do “Projeto Questão de Gênero”, lançado em 2009 pelo MPMT, que visa prevenir e combater a violência contra mulheres, esclarecer seus direitos e ressaltar os benefícios da igualdade de gênero para jovens em idade escolar e universitários; é Conferencista de âmbito nacional, especialista na área de combate à violência doméstica, questões de gênero e direitos humanos das mulheres.
Título original da matéria "Os homens também necessitam da proteção especial prevista na Lei Maria da Penha
Na íntegra e Notas no Webartigos.Com