Lei 11.340, sancionada no último dia 07 de agosto de 2006, denominada "Lei Maria da Penha", ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, trouxe modificações importantes referentes à pena, à competência para julgamento, bem como à natureza jurídica da ação penal nos crimes de lesão corporal caracterizados como violência doméstica.
A citada Lei modificou a pena dos crimes de violência doméstica, alterando o § 9º do art. 129 do Código Penal, dispondo que "Se a lesão foi praticada contra a ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos".
Assim, a pena máxima para o crime de lesão na violência doméstica passou de 1 ano para 3 anos de detenção, não mais sendo considerado, em conseqüência, crime de menor potencial ofensivo.
Portanto, a todo crime de lesão corporal leve contra a mulher praticada no âmbito doméstico não se aplica a Lei 9099/95, afastando-se automaticamente a competência dos Juizados Especiais Criminais.
A Lei não fez expressamente qualquer menção à natureza da ação penal nas infrações de que trata, no entanto, a interpretação sistemática do ordenamento jurídico, observando-se os princípios que regem a matéria, e os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, induz à conclusão de que tais crimes não mais dependem da vontade das vítimas para seu processamento. Significa dizer que os crimes de lesão corporal leve cometidos contra mulher na violência doméstica não dependem de representação, ou seja, voltaram a ser considerados de ação penal pública incondicionada.
A nossa legislação distingue a ação penal pública incondicionada da ação penal pública condicionada à representação. A primeira não está vinculada a qualquer condição para ser promovida pelo Ministério Público; não há manifestação da vontade da vítima, a segunda depende de manifestação de vontade da vítima ou seu representante legal, assim, nem mesmo o Inquérito Policial poderá ser instaurado sem que haja representação da ofendida, podendo esta renunciar a qualquer momento antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.
Ademais, o prazo para a vítima representar é de seis meses, contando-se do dia em que souber quem é o autor do crime, caso contrário, ocorrerá a extinção da punibilidade (CP, art. 107, IV).
Ressalte-se, ainda, que a ação penal pública incondicionada é a regra geral, conforme dispõe o art. 100 do Código Penal, sendo exceção a lei que expressamente a declara privativa do ofendido. Ocorre que a Lei 9.099/95, rompendo tradição do nosso processo penal quanto aos crimes de lesão corporal leve e culposa, havia estabelecido em seu art. 88 que estes crimes dependem de representação, sendo, portanto, de ação penal pública condicionada.
A nova Lei 11.340/06, por sua vez, ao determinar expressamente que não se aplica a Lei 9099/95 para a violência doméstica contra a mulher (art. 41), efetivamente afasta toda a Lei anterior, inclusive o dispositivo em comento. No entanto, apesar da Lei 11.340/06, em seu artigo 16, determinar que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida só será admitida a renúncia perante o juiz, tal situação não se aplica aos crimes de lesão corporal leve praticadas no âmbito doméstico, somente aos crimes em que o Código Penal expressamente determine que a ação seja condicionada à representação.
A nova Lei não fez qualquer ressalva quanto à Lei 9099/95, ao contrário, expressamente a afastou, restaurando a incondicionalidade para o processamento das lesões corporais leves, de modo que o Ministério Público não precisa mais de autorização das vítimas para processar os acusados, podendo iniciar a persecução penal a partir do auto de prisão em flagrante, requerimento da vítima, seu representante legal ou ainda por qualquer pessoa do povo.
Outro não poderia ser o entendimento, uma vez que os crimes que devem depender de representação são aqueles em que o interesse privado à intimidade das vítimas sobrepujam o interesse público em punir o crime. Em caso de violência doméstica, a solução é exatamente oposta. É interesse público que tal violência cesse, não podendo o Estado tolerá-la em nenhuma hipótese. Há muito a violência doméstica deixou de ser considerada um problema conjugal, familiar, em que não se mete a colher.
A opção brasileira, por determinação constitucional, é pelo seu combate: "Art. 226 (...) § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de sua relações." Frise-se, ademais, que a dignidade humana é valor imperativo e fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, da Constituição Federal). Representa, juntamente com os direitos fundamentais, a própria razão de ser da Constituição da República, já que o Estado é apenas meio para promoção e defesa do ser humano .
A dignidade é mais que um princípio: é norma, é regra, é valor, que não pode ser postergado em qualquer hipótese. Aliás, os direitos fundamentais decorrem exatamente do reconhecimento da dignidade do ser humano. Sem esta, não tem sentido pensar naqueles.
Por sua própria natureza, a dignidade humana é irrenunciável.
E, como se não bastasse a clareza da norma constitucional em comento, o Brasil, juntamente com os demais Estados americanos, firmaram a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará), que determina ao Estado brasileiro: "art. 7º b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; (grifamos) e) Tornar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher". (grifamos)
Assim, a exigência de representação das vítimas tem gerado a total impunidade dos crimes cometidos, eis que 80% das ocorrências de violência doméstica têm sido arquivadas sob a alegação da "falta de interesse" (representação) das vítimas. Portanto, a lesão cometida contra a mulher em âmbito doméstico e familiar não mais depende de representação. Os agressores devem ser presos em flagrante e só podem ser liberados por ordem judicial. A prisão preventiva é permitida, conforme art. 42, que alterou o art. 313 do Código de Processo Penal. As investigações não poderão ser paralisadas e o agressor deve ser processado e punido, mesmo contra a vontade das vítimas.
Ana Paula Schwelm Gonçalves é advogada e ouvidora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República em Brasília (DF).Fausto Rodrigues de Lima é promotor de Justiça do Distrito Federal. ---Publicado em Jus Navigandi, 13/09/06.
A Lei Maria da Penha na íntegra,artigos, matérias, textos, vídeos, links.
Soltem-me, pedia Yoani
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Vão ter de escutar
Porque se algo tenho é a palavra para falar
Yoani Sanchez
Uma jovem mulher de Cuba que sofreu violência institucional.
Quantas de nós aqui também no Brasil sofreram de violência policial!
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"As duas violências foram muito graves, a doméstica e a institucional. Em ambas, me senti impotente. Mas não ver a quem recorrer é algo que deixa a pessoa muito frustrada, deprimida"
Maria da Penha
Maria da Penha