O meu olhar crítico não se conforma com a assertiva de que o juiz deve ser um sujeito neutro. A neutralidade é anti-natural, pois todo ser humano carrega a sua história permeada de valores, ideologia, filosofia, visão de mundo, idiossincrasias, desejos, sentimentos, razão e emoções. Com efeito, o juiz é um ser humano, composto de carne e osso, e carrega toda essa tábua de valores até o final de sua vida, não podendo ser este sujeito todo poderoso, alheio à realidade e imune às influências internas e externas, para se tornar um inerte e autômato aplicador da lei. Carlos Gustav Jung sustenta que todo homem tem um arquétipo masculino e um feminino yang e yin - caracterizando o lado masculino pelo princípio da ordem, racionalidade, do senso prático e do dever, enquanto o arquétipo feminino está voltado para o sentimento, a criatividade e a justiça. O magistrado sempre foi gestado numa cultura legalista e formalista, cuja sentença era elaborada por mero silogismo. A jurista Lídia Prado, apoiada nos ensinamentos de Jung assevera que "a alteridade é o arquétipo da anima na personalidade do homem e do animus na personalidade da mulher, que possibilita o encontro do Eu com o Outro dentro as totalidade (self), em um clima de respeito pelas diferenças. Tem sido vista como o arquétipo da democracia, da ciência, da criatividade, do amor conjugal e ao próximo, da decisão feita com justiça". O julgador, com efeito, deve ser imparcial, não necessariamente neutro, pois não pode se distanciar de sua realidade cultural e nem evitar as influências da sua psique no momento de sentenciar. Não deve, portanto, esconder-se no mito da neutralidade para deixar verdadeiramente de julgar, de decidir as questões relevantes que lhe são submetidas. É preciso retirar a venda da Deusa da Justiça, para que o juiz desça do mundo abstrato e dos conceitos normativistas em que se encastelou durante muito tempo e encontre, atrás das regras, o ser humano, sua realidade sócio-cultural, seus valores, colocando-se na posição do outro, entrando em contato com os princípios da igualdade material, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, aspirando, assim, atingir o eqüitativo e o justo, através de um juízo valorativo, no âmbito dos limites da verdade processualmente possível. Imparcialidade nada tem a ver com neutralidade, ou seja, o juiz não precisa isolar-se da sua comunidade e seus valores para decidir com imparcialidade, contrarium sensu, o juiz deve estar sintonizado com o seu tempo, contextualizado e atento às mutações sociais, utilizando o seu poder criativo e sentimento para realizar, em toda a sua plenitude, a justiça no caso concreto. A prof. Lídia Prado, apoiada nos ensinamento de Renato Nalini, assevera o seguinte: "O magistrado apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A parcela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, "esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas". O juiz, nesse contexto, sempre foi um operador ou "escravo" da lei¹ que desenvolvia seu raciocínio jurídico para construir uma sentença como um mero silogismo² mesmo que servisse de "pretexto para a imposição de injustiças legalizadas³". Como se depreende, na cultura de devoção ao código, as leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o "legislador" não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros na sua integralidade não pudessem lhe escapar ao controle, pelo menos em alguma particularidade. É de se ver que, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, o legislador não é completamente livre para fazer leis, mormente quando o conteúdo dessas leis venha ferir direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O legislador tem limites e o juiz não mais pode ser um defensor intransigente da "regra", agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido. O jurista Dalmo Dallari, na obra já citada, arremata: "Toda a sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e de paz." O novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o Direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte. Esse novo modelo exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue a sua setentia com sentimento, utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando, assim, dos conceitos abstratos e da lógica tradicional, transformando-se, conforme o pensamento do jursita Renato Nallini, "num profissional atualizado, um solucionador de conflitos, polivalennte e intérprete da vontade da Constituição". ¹ Por força dessas concepções, o juiz passou na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do Século XVII, devendo ser um aplicador da lei, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz "escravo da Lei", expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevante o valor moral ou intelectual do magistrado e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos "fabricantes de leis". (DALLARI, 2006, p. 11) ² Barroso (2005, p. 6-7) explicita: "nessa perspectiva", a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto". ³ DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit. p. 13. |